quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

 CAPÍTULO I

1. O PACTO SOCIOAMBIENTAL E O IMAGINÁRIO

DA CIDADE: PLANEJAMENTO URBANO COMO LEI


1.1 - A política e a cidade


O pensador grego da antiquidade que formou a base do pensamento

moderno sobre a política foi Platão (428 a.c – 387 a.c1). Em

seus Diálogos, Platão refunda o pensamento político grego e “[...]

inventa esquemas imaginários de um grande poder”, articulando e

instrumentalizando seus esquemas por “meios conjuntistas-identitários”

(VERNAY, 2004, p. 17). Em A República (433 a.c) Platão estará

fundamentando o direito na cidade-estado grega, onde “[...] a justiça

é o fato de que o conjunto da cidade – [...] – está bem dividido, bem

articulado, e que nesse conjunto da cidade cada um tem o seu lugar

e não tenta tomar o de outro” (CASTORIADIS, 2004, p. 24). Desse

modo, a hierarquia da cidade reafirma a “[...] natureza diferente dos

indivíduos que compõem a cidade-estado” (CASTORIADIS, 2004, p.

25), justificando dessa forma a divisão em classes e a ocupação diferenciada

do território da cidade.

Em A República, estar-se-ia tentando uma aproximação para definir

a verdade e a boa cidade, uma idealização. Poder-se-ia dizer que

em A República fundamenta-se toda a idéia da ciência do urbanismo

com suas divisões, setorizações, zoneamentos e hierarquizações do

espaço. Nesse primeiro momento do pensamento platônico, a cidade

é um conceito puro, como a verdade e a beleza, onde a funcionalidade

e a boa forma da cidade pudessem ser trabalhadas em um conceito

técnico, onde no grego thecné se aproxima de uma idéia de arte. Parece

óbvia a coincidência desse pensamento clássico do filósofo grego

com uma gênese narrativa do urbanismo moderno.

De acordo com A República, são os filósofos de um tipo especial

que deveriam governar a cidade, segundo Platão, depois de terem

“[...] passado o essencial de suas vidas preparando-se do ponto de


1 Quase todos os autores situam Platão no período de 367 a.c. e 360 a.c, entretanto Castoriadis

(2004, p. 37) irá optar por uma data mais tardia entre o nascimento de Platão em 428 e suas

Cartas na fundação da Academia de Atenas em 367 a.c.. Desse modo, o período admitido por Castoriadis

(2004) foi usado para definir o momento histórico desse pensador grego.


vista dialético e matemático para a teoria, para a visão, para a intuição

das Idéias” (CASTORIADIS, 2004, p. 244). Mas nesse texto de

Platão encontra-se um paradoxo: “[...] nada nos diz que essas Idéias,

essas essências como tais tornem o filósofo da República capaz de gerenciar,

como se diz hoje, de governar nas situações singulares, concretas”

(CASORIADIS, 2004, p. 244). Esse tema do filósofo que [...] dirige

o olhar para um lugar e que não vê diante de seus pés [...]” é retomado

por Platão em Filebo e também faz parte do “[...] anedotário filosófico

dos gregos: lembremo-nos de Tales, que olha o céu e cai num buraco”

(CASTORIADIS, 2004, p. 244).


Mas é em A República, nos diálogos com o jovem Sócrates e Adimanto,

que Platão fundamenta a origem da cidade nas necessidades do ser

humano de viver e, para suprir essas necessidades “[...] uma pessoa

participa numa sociedade com outra, [...]” (PLATÃO, [369a-e], 2003, p.

56). “_ Assim, portanto, um homem precisa de outro para uma necessidade,

e o outro ainda para outra, e, como precisam de muita coisa, reúnem

numa só habitação companheiros e ajudantes. A essa associação

pusemos o nome de cidade” (PLATÃO, [369a-e], 2003, p. 56).

Nesse aspecto chama atenção no pensamento do filósofo grego a

fundamentação de que a cidade é uma associação de indivíduos, em

uma visão muito próxima da idéia de civitas, ou seja, uma noção de

reunião e pertencimento a uma comunidade de interesses e vivências

comuns. Também, deve-se ressaltar a utilização da palavra habitação

como extensão do conceito de cidade. A própria gênese do discurso

do urbanismo irá utilizar essa comparação entre a casa e a cidade

como morada de todos. Desse momento para frente Platão nos convida

a fundar “[...] em imaginação uma cidade” (PLATÃO, [369a-e],

2003, p. 56) e começará enumerar as necessidades humanas essenciais,

tais como a obtenção de alimentos, a habitação, o vestuário e

coisas do gênero, passa para os artífices, carpinteiros, mercadores

e diversas outras atividades (PLATÃO, [369a-e], 2003, p. 56). Essa

organização das atividades humanas na cidade e sua sistematização

em forma de hierarquia são, pois, as bases do pensamento filosófico

de Platão nessa tentativa de vislumbrar uma cidade ideal2.


2 Os Gregos tinham em sua mitologia um “lugar das delícias no além”, as “Ilhas dos Bem-Aventurados”

e é em Hesíodo a descrição mais antiga dessa utopia (Trabalhos e Dias). Muito embora em

outros autores essa concepção vai se “espiritualizando” é em Platão, a partir do mito do Górgias,

que ela vem “[...] dotada de um conteúdo ético, tornando-se o lugar de prêmio dos que praticaram

o bem” (NASSETTI, Pietro, Tradutor de A República de Platão, 2004, nota de rodapé à pág. 215).



Não parece despropositado que o discurso do urbanismo modernista

incorpore esses elementos sistematizadores e reguladores para

tentar compreender o fenômeno urbano enquanto algo possível de se

transformar em uma nova ciência. Essa idéia é fundamentada pelo

próprio “[...] Platão que pensa que há uma verdadeira ciência das

coisas em geral e das coisas humanas em particular, que, por conseguinte,

é ao depositário dessa ciência que pertence regrar, regular,

governar as coisas humanas” (CASTORIADIS, 2004, p. 64). Ainda em

Platão ([373a-e], 2003, p. 60) encontra-se referência à cidade sã e

àquela com doença, ou seja, a cidade “[...] que está inchada de humores”

onde existe também a injustiça. No entanto, mais à frente é

admitida que a tarefa mais importante é, na verdade, “[...] proceder

à escolha daqueles de qualidades e natureza apropriadas para a custódia

da cidade” (PLATÃO, [374a-e], 2003, p. 62). E, após digressões

com seus amigos de diálogo, Platão vai concluir que as qualidades

“físicas e psíquicas” para essa tarefa: “_Por conseguinte, será por

natureza o filósofo, fogoso, rápido e forte quem quiser ser um perfeito

guardião da nossa cidade” (PLATÃO, [376a-e], 2003, p. 64). E,

depois, tece comentário sobre a educação desse filósofo que deveria

conhecer todas as atividades humanas para poder regrar e organizar

a vida na cidade.


Mas, com as ponderações de sues amigos nos diálogos sobre a

corrupção que poderia advir desse poder absoluto sobre as coisas do

estado e do interesse público, começam a elaborar regras e padrões

de comportamento que deveria nortear as ações desse guardião da

cidade e de todos os cidadãos, como uma forma de “[...] delinear as

leis [...]”. O quê, na voz do jovem Sócrates surge como uma indagação:

“___Não achas que depois disto farão o esboço da forma da

constituição?” (PLATÃO, [501a-e], 2003, p. 197). Assim, se introduz

a lei como fio condutor da vida em sociedade bem como a forma

de governo democrático (3) enquanto melhor meio de trazer à luz as

verdadeiras aspirações do povo para a administração da cidade (4). E

os amigos filósofos em A República vão concluir, ainda na forma de


3 O ateniense Sólon (c.640-560 a.C) é exaltado diversas vezes como fundador da democracia,

mesmo em Platão.


4 Nesse aspecto faz-se um paralelo com o mito da Caverna apresentado (PLATÃO, 514a-c, 2003, p.

210) para demonstrar a luz como metáfora do conhecimento e o encontro da verdade e da justiça

como forma de administração da coisa pública.


indagação de Platão sem contestações dos demais interlocutores, o

seguinte: “_ Então que outras pessoas forçarás a ir para guardiões do

Estado, senão àqueles que, sendo mais conhecedores dos métodos

da melhor administração da cidade, usufruem de outras honras e de

uma vida melhor do que a do político?” (PLATÃO, [521a-e], 2003, p.

217).


No entanto é em seu outro diálogo, O Político (294 a.c.), que Platão

aprofunda a problemática de gestão da cidade. Ou melhor, apresenta

a preocupação com a atividade da administração da cidade como função

específica para um certo tipo de indivíduo. Nesse Diálogo, Platão

sintetiza como ciência, nas palavras do “Estrangeiro de Eléia”, a importância

desse indivíduo para a vida da cidade:

_ Essa atividade que comanda todas as outras, que cuida das leis

e de todos os assuntos da pólis e que une todas essas coisas em

um tecido da maneira mais perfeita possível, nós teríamos razão,

ao que me parece, de escolher-lhe um nome razoavelmente

simples para a universalidade de sua função e esta deveríamos

chamá-la de política (PLATÃO, O Político, [305e] Apud CASTORIADIS,

2004, p. 84).


As comparações do político como um tecelão e como pastor, utilizadas

por Platão nesse diálogo, ajudam a compor a imagem do político

como aquele que tece as virtudes dos cidadãos e faz com que haja

uma boa mistura dessas qualidades, ou que cuida para que os outros

sejam protegidos e tenham suas necessidades atendidas (CASTORIADIS,

2004, p. 60). Por outro lado, é ainda aquele que usa subsidiariamente

as artes auxiliares da política, tais como a estratégia, a retórica

e a arte do juiz para a democracia da cidade: “Aristóteles retomará

essa idéia no início da Ética a Nicômaco quando diz que a política é a

arte mais arquitetônica” (CASTORIADIS, 2004, p. 84). Ou poder-se-ia

parodiá-lo dizendo que a política é a arte mais urbanística?


No entanto, como Castoriadis (2004) mesmo admite, o Platão mais

maduro com o Diálogo posterior, As Leis, consolida a idéia de que

“[...] a lei fala somente do universal enquanto na realidade sempre

se está lidando com o singular” (CASTORIADIS, 2004, p. 64). Nesse

sentido parece que ele abandona de vez a idéia daquela “[...] cidade

perfeita definida de uma vez por todas” (CASTORIADIS, 2004, p.

65). “Não pode haver lei que englobe de uma vez por todas e para

sempre todos os aspectos das atividades humanas, pois a separação

entre a lei e a realidade não é acidental, ela é essencial” (CASTORIADIS,

2004, p. 65). Mas neste diálogo, As Leis, Platão coloca algumas

considerações sobre a revisão das leis de tempos em tempos, mas

deixa claro também que o objetivo essencial das leis é “[...] paralisar

a história, fixar a instituição da sociedade” (CASTORIADIS, 2004, p.

65). Em outros momentos, com sua filosofia reflexiva, deixa claro

em O Político que “Nenhuma regulamentação poderá limitar a alteração

perpétua do real social e histórico” (CASTORIADIS, 2004, p. 66).

Dessa forma, as obras sobre a moral nos gregos eram tratados sobre

as leis e o De Legibus [Das Leis] de Cícero quando “[...] define a lei

natural, que características lhe atribui? Vetare et jubere: proibir e ordenar”

(BOBBIO, 2004, p. 53).


Essas idéias foram se consolidando ao longo dos tempos e outros

pensadores aprimoraram-nas. E com essa finalidade de ordenar as

atividades, o uso e a ocupação do território tornou-se preocupação e

ação dos legisladores da cidade. Aristóteles, após Platão, vai afirmar

que o objetivo da Política não é viver, mas viver bem, isto é, colocando

a atividade como “uma arte ou ciência do Governo” (ARISTÓTELES,

Política, [127b] 2003). Os séculos foram sedimentando o Estado moderno

e diversos homens de pensamento político foram contribuindo

para seu aperfeiçoamento. Desde o florentino Maquiavel, no séc. XVI,

e os ingleses Hobbes e Locke no séc. XVII, até o século XVIII com os

franceses Montesquieu e Rousseau e os americanos Hamilton e Jay

que “[...] o pensamento político acompanha a construção de uma ordem

política da qual o Estado-Nação haveria de ser a realização mais

completa” (WEFFORT, 1989, p. 07). Depois, no século XIX, importantes

pensadores, tais como Burke, Kant, Hegel, Tocqueville, Stuart

Mill e Marx avançam na fundamentação dessa concepção do Estado

moderno e, por conseguinte, das formas de governo.


Em “O Príncipe” de Maquiavel, datado dos anos de 1512-1513, fazse

uma diferenciação entre a anarquia, o principado e a república.

É que em qualquer cidade se encontram estas duas forças contrárias,

uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado

nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes

dominar e oprimir o povo. Destas tendências opostas surge nas

cidades, ou o principado ou a liberdade ou a anarquia (MAQUIAVEL,

1989, p. 31).



Está claro desde o início, conforme explicitado no título do próprio

Capítulo V de O Príncipe, que se discute “como se devem governar as

cidades ou principados [...]”. E Maquiavel (1989) está contrapondo

a anarquia e a desordem das cidades como problema político para

“[...] encontrar mecanismos que imponham a estabilidade das relações,

que sustentem uma determinada correlação de forças” (SADECK,

1989, p. 20). Maquiavel (1989) sugere, pois, que duas formas

existem para contrapor a anarquia decorrente da “natureza humana”:

o principado e a república. A escolha entre essas duas formas institucional

independem da vontade “[...] ou de considerações abstratas e

idealistas sobre o regime, mas da situação concreta” (SADECK, 1989,

p. 20). E Maquiavel (1989) está deixando claro que o principado é

originado pela “vontade dos grandes”, isto é, da elite, ou do povo. No

primeiro caso origina-se a monarquia e no segundo, a república. No

entanto, em outro escrito, Maquiavel (1989) coloca como importante

nessa concepção também o fato de que a organização do Estado deve

ser uma instituição perene.


Não basta, pois, para a felicidade de uma república ou de um reino,

ter um príncipe que governe com sabedoria durante a vida; é

necessário que se possua um que organize o Estado de modo que,

mesmo depois de sua morte, o governo permaneça em plena vida

(MAQUIAVEL, 1989, p. 45).


Em Maquiavel, fica clara a noção de que a administração do Estado,

ou como nesse momento histórico poder-se-ia diretamente associá-

la enquanto administração da cidade, figura como elemento de

estruturação de um modo de gestão da vida em comum, e, que deveria

permanecer ao longo dos tempos independente de uma pessoa,

mas deve ser algo fora da figura de um homem, ou seja, uma instituição

forte. Também fica evidente a noção de que para se contrapor à

anarquia nas cidades far-se-ia necessário um poder central forte que

dominaria e ordenaria os interesses comuns para garantir a liberdade

dos indivíduos. Essa é a defesa do poder estatal como função reguladora

da vida cotidiana dos cidadãos e, por conseguinte, estabelecendo

os padrões de uso e ocupação do território comum.

Entre os séculos XVI e o XVIII surgiram os filósofos chamados de

contratualistas e afirmavam basicamente que:


[...] a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os

homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização

– que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles,

estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política

(RIBEIRO, 1989, p. 52).


E Hobbes (5) com o seu livro Leviatã discorre sobre a natureza do

homem e a igualdade entre eles, mostrando o modo de conte-los

para que um não subjugue outro usando a astúcia ou a força de

um Estado controlando e reprimindo. Desse modo, afirma Hobbes,

torna-se necessário um Estado controlando e reprimindo os homens

e “conseqüentemente esse aumento do domínio sobre os homens,

sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos

admitidos” (HOBBES, 1989, Cap. XIII, p. 75). No entanto, para por

fim ao conflito entre os homens far-se-ia necessário um fundamento

jurídico para o uso da força e impor respeito, o que em Hobbes fica

definido como a “lei de natureza”.

Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral,

estabelecido pela razão, mediante o qual de proíbe a um homem

fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários

para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir

melhor para preservá-la (HOBBES, 1989, Cap. XIV, p. 78).


Em Hobbes (1988) é fundamentada a idéia de que “[...] um Estado

é a condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com

o Estado” (RIBEIRO, 1989, p. 62). E a multidão pode “[...] designar

um homem ou uma assembléia de homens como representante de

suas pessoas [...]”. “Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa

se chama Estado, em latim civitas” (HOBBES, 1989, cap. XVII, p.

105-106).


Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens

concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros,

que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja

atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos


(5) Hobbes, refugiado na França, teria publicado o Leviatã em 1651 como uma apologia do estado

todo-poderoso.


eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto

os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele,

deverão autorizar todos os atos e decisões, a fim de viverem em

paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens

(HOBBES, 1989, cap. XVIII, p.107 – grifos do autor).


A distribuição da terra em Hobbes (1988) é regulada pelo poder do

Estado de modo a garantir os interesses comuns, onde a propriedade

também [...] é um efeito do Estado [...]” e não um direito sagrado

do indivíduo (HOBBES, 1989, cap. XXIV, p. 150). E dessa forma, a

competência em decidir em que lugares podem ter quais atividades

e como algumas delas devem ser “[...] reservadas para manutenção

em sua capacidade pública [...]” (HOBBES, 1989, cap. XXIV, p. 153).

O século XVII apresenta uma mudança no pensamento político a

partir das idéias de John Locke (1632-1704) e que se caracteriza por

uma postura individualista liberal, de um “[...] defensor da liberdade

e da tolerância [...]”. E, ainda, como [...] fundador do empirismo,

doutrina segundo a qual todo conhecimento deriva da experiência”

(MELLO, 1989, p. 83). Locke em seu ensaio sobre a origem, objetivo

e extensão do governo civil, no texto “Segundo Tratado”, demonstra

que “[...] nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento

expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo”

(MELLO, 1989, p. 84 – grifo do autor). Também sustenta que o trabalho

sobre a terra era gerador de direitos sobre ela e, pois, o “[...] fundamento

originário da propriedade” (MELLO, 1989, p. 85). Em Locke

os homens estabelecem livremente entre si um contrato social que

forma a “[...] sociedade política ou civil”. Este contrato social é [...]

um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente

em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os

direitos [...]” (MELLO, 1989, p. 86 – grifo do autor).


E assim todo homem, concordando com outros em formar um

corpo político sob um governo, assume a obrigação para com todos

os membros dessa sociedade de se submeter à resolução da

maioria conforme esta assentar; se assim não fosse, esse pacto

inicial – pelo qual ele juntamente com outros se incorpora a uma

sociedade – nada significaria, e deixaria de ser pacto [...] (LOCKE,

1989, p. 97).



Para Locke os fundamentos do Estado civil estavam no livre consentimento

dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade e formação

de um governo, a proteção do direito à propriedade, o controle

do executivo pelo legislativo, bem como o controle do governo

pela sociedade (MELLO, 1989, p. 87). Começam os delineamentos

de como as forças políticas poderiam controlar a administração do

Estado, ou neste momento, ainda se confundiam com a gestão das

cidades e da produção agrícola para abastecimento e mercantilização

do excedente.


Poder-se-ia depreender desses contratualistas a noção principal de

um pacto socioambiental como o consentimento da sociedade civil

organizada em dispor de seu território comum, através de sua relação

imediata enquanto comunidade decorrente de uma forma de organização

sob um poder político legitimado socialmente (6). Na idéias de

Montesquieu têm-se um novo entendimento de como se estabelece

um pacto socioambiental a partir da percepção das correlações de forças

sociais que se materializaram no processo político de construção

deste. Essa idéia é fundamental para se compreender em que medida,

hoje em dia, certos elementos são mantidos, ou não, no pacto

sociambiental da cidade em determinados momentos, pois podem ser

apenas reflexo de um embate ideológico entre forças políticas. Muitas

das discussões sobre a função da cidade e seu rebatimento físicoterritorial

em um plano diretor, transformados em zoneamentos, refletem

apenas os conflitos políticos e estas correlações de forças, sem

nenhum senso técnico embasando um pretenso urbanismo neutro.

Rousseau em 1755 publica seu texto o Discurso sobre a origem e

os fundamentos da desigualdade entre os homens, na Enciclopédia,

onde também aparece o seu artigo Economia política. E, em 1762,

Rousseau publica o Contrato Social e inova o pensamento político ao

“[...] propor o exercício da soberania pelo povo, como condição primeira

para sua libertação” (NASCIMENTO, 1989, p. 194). Em o Contrato

Social, Rousseau procura estabelecer as possibilidades de um pacto

social legítimo através da liberdade civil, onde “[...] o fundamental é

a condição de igualdade entre as partes contratantes” (NASCIMENTO, 1989, p. 196). Ao capítulo VI 

do Contrato Social, Rousseau dá o título

Do Pacto Social, onde fundamenta que esta associação dos homens

produz, em lugar da pessoa particular, “[...] um corpo moral e coletivo,

composto de tantos membros quanto são os votos da assembléia”

(ROUSSEAU, 1989, p. 214).


(6) O pensamento político sofrerá nova inflexão com as idéias de Montesquieu (1973), demonstrando

logo na primeira parte de seu livro, O Espírito das Leis, que “As leis, em seu significado mais amplo,

são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas [...] e , ainda, que as “[...] as leis

são as relações que se encontram entre ela e os seres, e as relações entre esses diversos seres”

(MONTESQUIEU, 1973, p. 121).



Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de

todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje,

o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus

membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e

potência quando comparado a seus semelhantes (ROUSSEAU,

1989, p. 221 – grifos do autor).


É importante a concepção do termo cidade como forma de união ou

associação entre os homens, o que se aproxima do conceito de civitas

e mesmo da noção política do cidadão como membro legitimador

desse corpo coletivo. O pacto social, pois, obrigaria tacitamente a um

compromisso individual com o coletivo, onde “o que o homem perde

pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a

tudo que o seduz e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade

civil e a propriedade de tudo que possui” (ROUSSEAU, 1989, p.

223). Ora, vê-se nessa passagem o fundamento claro da propriedade

privada e seu reconhecimento na base do pacto, mas este direito

estará também limitado ao interesse coletivo, da coisa pública. Os

diplomas legais modernos no Brasil, notadamente o estatuto das Cidades,

reafirmam esse princípio na função social do solo urbano e os

planos diretores tentam dar concretude a esses interesses coletivos

quando condicionam o uso de certas áreas consideradas de interesse

ambiental ou social. A propriedade particular da terra urbana, oi, sofre

um condicionamento ao interesse coletivo para garantir um pacto

socioambiental.


Das relações entre os homens e a lei, Rousseau estabelece uma

primeira a dos membros entre si ou, a segunda, entre os homens e

o corpo social. E esta segunda relação seria tão grande quanto possível,

[...] de modo que cada cidadão se encontre em perfeita independência

de todos os outros e em uma excessiva dependência da

pólis: o que se consegue sempre graças aos mesmos meios, pois

só a força do Estado faz a liberdade de seus membros. É desta

segunda relação que nascem as leis civis (ROUSSEAU, 1989, p.

229).


Ora, novamente em Rousseau a cidade é o palco, o território onde

se materializa o pacto social e nasce a lei civil com base nos costumes

e nas convenções sociais. Desse modo, desde Platão até Rousseau, a

cidade é o espaço político por excelência para exercício dos direitos

civis e territorialização socioambiental, que é de interesse da coletividade,

ou seja, uma concepção da cidade-estado. Essas idéias sobre

a engrenagem política e das condições de legitimidade de um pacto

social perpassaram os séculos e fundamentam hoje muito do que se

faz na legislação urbanística e ambiental com a garantia de autonomia

municipal nas constituições nacionais (7).


No século XVIII surge um importante pensador inglês, considerado

o fundador do conservadorismo moderno, é Edmund Burke. Era hostil

ao movimento revolucionário surgido após a revolução francesa em

1789 que inspirou sua obra mais importante publicada em 1790: Reflexões

sobre a revolução em França. Nesta obra, Burke discute idéias

fundamentais tais como a questão da igualdade, dos direitos dos homens

e da soberania popular e a “[...] deslegitimação dos valores tradicionais”

(KINZO, 1989, p. 19). Burke admite que a sociedade é de

fato um contrato e o Estado é “[...] uma associação de toda ciência,

de toda arte, de toda virtude e de toda perfeição [...] uma parceria

não apenas entre aqueles que estão vivendo, [mas também entre]

aqueles que estão mortos e aqueles que irão nascer” (BURKE, 1989,

p. 42). É interessante que mesmo vivendo e manifestando-se em um

período conturbado da história na Inglaterra Burke lança a idéia de

um pacto com as gerações futuras. Esta noção vai, também, fundamentar

o conceito de desenvolvimento sustentável do século XX, nos

fins dos anos 80, pelo movimento ecológico.

O pensamento político recebe uma enorme contribuição do inte-lectual alemão Emmanuel Kant (1724-

1803) quando este afirma que

“[...] há dois gêneros de objetos: a natureza, que é objeto da física,

e a liberdade, que é objeto da filosofia moral ou ética” (ANDRADE,

1989, p. 50). E a liberdade é, pois, segundo Kant, a “[...] liberdade

de agir segundo as leis”, sendo esta que designa sua autonomia, ou

seja, “[...] a propriedade dos seres racionais de legislarem para si

próprios” (ANDRADE, 1989, p. 53-54). 


(7 ) Em 1787, na Filadélfia, reuniu-se a Convenção Federal que elaborou a nova Constituição dos Estados

Unidos. “O federalista” é uma série de ensaios publicados na imprensa de Nova York em 1788,

como obra conjunta de Alexander Hamilton (1755-1804), James Madison (1751-1836). E John Jay

(1745-1859). A inflexão no pensamento político, a partir destes textos de Os Federalistas, vem na

defesa de um governo central forte e de uma ampliação territorial do Estado como condição para

governos populares, em contraponto ao pregado até então. É a passagem da república das cidades

para uma democracia popular de massas. Há um deslocamento na idéia política para o que seria

uma concepção de cidade-estado-nação.


O direito público em Kant é o

conjunto de leis “[...] que requerem uma promulgação pública a fim

de produzir uma situação jurídica [...]”. É, pois, uma manifestação da

coletividade e “[...] quando os indivíduos numa nação relacionam-se

dessa maneira, constituem uma sociedade civil (status civilis). Encarada

como totalidade em relação a seus próprios membros, essa

sociedade civil chama-se Estado (civitas)” (KANT [311], 1989, p. 77

– grifos do autor). “O contrato originário” é o “[...] ato onde o povo se

constitui em Estado [...]” e que deve ser legitimado através dos atributos

jurídicos necessários ao cidadão para participar do processo de

elaboração dessas leis, quais sejam, a liberdade legal, a independência

civil ou autonomia e a igualdade (KANT [313-315], 1989, p. 80).


As contribuições do pensamento de Kant repercutem até hoje

quando da representação política da sociedade civil organizada no

processo de elaboração da legislação urbanística e ambiental. Ainda,

pelo reconhecimento e exigência legal, como no Estatuto das Cidades,

de que sejam instituídos conselhos com representantes do estado, da

sociedade civil e das concessionárias de serviços públicos e institutos

de ensino e pesquisa. Em Kant também é fundamentado o conceito

de que todas as demandas legais, posto que sem elas não há justiça,

devem vir na “forma da publicidade” (KANT [381-382], 1989, p. 93).

Ainda, a exigência legal das audiências públicas para elaboração dos

planos diretores urbanos pode ser interpretada como legitimação de

um pacto socioambiental, ou seja, corroborada como uma extensão

desse pensamento político formulado por Kant.


No entanto, em Hegel há uma mudança radical no conceito contratualista,

onde o Estado é derivado da criação artificial, produto de um

pacto. Segundo Hegel estar-se-ia “[...] confundindo Estado e sociedade

civil” (BRANDÃO, 1989, p. 107). A inversão desse pensamento por

Hegel coloca o Estado enquanto associação e verdadeiro conteúdo,

pois “[...] o destino dos indivíduos é viver uma vida universal” e a

base do Estado não seria um contrato, mas produto da vontade universal

(HEGEL, 1989, p. 115). Em Hegel, a criação do Estado é uma

realidade histórica e mundana “[...] produzida pela ação dos homens”

(BRANDÃO, 1989, p. 111). O viver coletivo é, pois, universalizante, o

que retoma a concepção aristotélica segundo a qual o homem é um

animal naturalmente social e o Estado não apenas a condição do viver

junto, mas uma associação para o bem viver.


Mas a contribuição principal de Hegel ao pensamento político foi,

conforme Marx assume posteriormente, colocar a questão da economia

clássica em relação à filosofia e à política moderna. É assim que

ele se ocupa dos problemas da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra

e esta “[...] reconciliação com a realidade (Versohnung mit der

Wirklichkheit), que permite Hegel perceber e formular com clareza,

acuidade e amplitude até então inigualáveis os problemas da sociedade

européia de seu tempo” (BRANDÃO, 1989, p. 114). Interessante

perceber que a sociedade começa, nesse momento da história, seu

processo de urbanização e o pensamento de Hegel vai mostrar essa

ruptura para surgimento dessa nova civilização industrial. Assim, em

Hegel, da mesma forma que o Estado, os sistemas das leis são reflexos

das correlações de forças das diversas classes que se reúnem em

corporações para defesa de interesses temporais comuns. E como o

território, com seus recursos naturais, é o capital essencial para a sociedade

industrial emergente, a regulação do uso e ocupação do solo

pelo Estado e suas legislações podem ser entendidas como controle e

domínio de classe sobre o espaço urbano e rural.


Além disso, em um Estado civilizado, o legislar é somente uma

progressiva transformação das leis existentes, e as chamadas novas

leis podem referir-se somente a minúcias e particularidades,

cujo conteúdo já é preparado mediante a prática dos tribunais, ou

também precedentemente decidido (HEGEL, 1989, p. 132).

Essa digressão pode remeter ao processo de elaboração dos planos

diretores que, em quase sua totalidade, são decididos previamente

por técnicos urbanistas em uma linguagem hermética e cifrada para

“legitimar um saber” específico e muitas vezes camuflam interesses.

Esta prática subverte a participação popular em apenas uma multidão

que legitimaria o processo de criação da lei com uma cooptação silenciosa.

Essa discussão, entretanto, ainda dever ser objeto de muitos

outros estudos que podem fazer avançar esse processo do planejamento

urbano como lei, como pacto socioambiental.



No entanto, é com Tocqueville que o conceito de democracia como

processo universal começa a ser fundamentado na liberdade e na

igualdade. E ele complementa que, para manutenção das liberdades

fundamentais, “[...] é na ação política dos cidadãos que está posta

a garantia de sua real existência na democracia” (QUIRINO, 1989,

157). Portanto, o germe da necessária participação democrática dos

cidadãos foi inoculado fortemente no pensamento político através de

Tocqueville e ele, ainda, afirma que as leis e instituições políticas sozinhas

não seriam suficientes para a garantia da liberdade. “Isso porque

o verdadeiro sustentáculo da liberdade está posto na ação política

dos cidadãos e na sua participação nos negócios públicos” (QUIRINO,

1989, 157). Assim tocqueville incute uma nova perspectiva no processo

de construção democrática, através da igualdade e liberdade,

concebendo “[...] uma sociedade onde todos, encarando a lei como

obra sua, a amariam e a ela se submeteriam sem constrangimento;

[...]” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 164).


O pensamento político de John Stuart Mill (1806-1873) foi muito

importante para compreender o processo de construção da democracia

moderna, principalmente pelo fato dele refletir sobre questões

fundamentais de economia e política, suas contemporâneas na revolução

industrial inglesa. Como afirma Eric Hobsbawm (1978), “[...]

nenhuma mudança na vida humana, desde a invenção da agricultura,

da metalurgia e do surgimento das cidades no neolítico foi tão profunda

como o advento da industrialização” (HOBSBAWM, 1978, p.

13). Stuart Mill é considerado o grande representante do pensamento

liberal democrático do século XIX e seu fundamento está no “[...] reconhecimento

de que a participação política não é e não pode ser encarada

como privilégio de poucos” (BALBACHEVSKY, 1989, p. 195).

No pensamento de Mill pode-se encontrar, portanto, duas noções

fundamentais na ciência política contemporânea, quais sejam, a primeira

é a “[...] defesa do pluralismo e da diversidade societal contra

as interferências do Estado e da opinião pública [...]”; e, a segunda

é a “[...] perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração

do dissenso predomine sobre a imposição de consensos

amplos” (BALBACHEVSKY, 1989, p. 198). Estes dois eixos são importantíssimos

para a compreensão do processo de elaboração das leis

urbanísticas, onde os conflitos e interesses diversos e plurais muitas

das vezes devem ser compatibilizados. Onde, ainda, por outro lado,

o consenso fabricado por movimentos articulados por interesses po-

líticos devem ser identificados e anuladas suas tentativas de imposição

como maioria circunstancial nas audiências públicas. A noção dos

sistemas abertos e multipolares são, pois, importantes na tentativa

de conciliação dos usos, atividades urbanas e ocupação territorial, na

medida em que mexem com os direitos individuais de inúmeros proprietários

em função de um bem coletivos que é a cidade. Mas como

“[...] é impossível a participação pessoal de todos, a não ser numa

parcela muito pequena dos negócios públicos, o tipo ideal de um governo

perfeito só pode ser o representativo” (MILL, 1989, p. 223).


Em Karl Marx o pensamento político do século XIX sofreu uma

profunda inflexão no que diz respeito às inter-relações entre economia,

classes sociais e política, bem como a emergência e perspectivas

revolucionárias do proletariado. Com seu “O Manifesto” ele descreve

a expansão, “[...] ao mesmo tempo destrutiva recriadora, da

burguesia” (WEFFORT, 1989, p. 233). Bem como afirma que a “[...]

história passada da humanidade é a história da luta de classes [...]”

(WEFFORT, 1989, p. 234). Seu pensamento político germinou em

uma Europa revolucionária, ainda com a memória fresca da revolução

francesa e das guerras napoleônicas, sendo ainda contemporâneo das

revoluções de 1830 e de 1848, da Comuna de Paris em 1871. Em

seu livro sobre a história do Marxismo, Eric Hobsbawm (1983), faz

uma periodização interessante que articula o pensamento econômico

e político com o processo da emergente sociedade industrial e, conseqüentemente,

com a intensiva e, sem precedente, urbanização da

civilização humana.


1 - O período anterior a 1848-1850 coincide com a primeira grande

crise de desenvolvimento do primeiro capitalismo industrial

[anos 1830 e 1840], que em alguns países é ao mesmo tempo

crise de transição para o capitalismo industrial; coincide também

com a crise revolucionária que tem seu ápice em 1848.


2 – 1850-1875-1883. É o período clássico do desenvolvimento

capitalista no século XIX [...]; o nascimento de um movimento

operário no continente europeu (a I Internacional); [...] a Comuna

de Paris, simultaneamente a última das revoluções jacobinas

e a primeira revolução proletária. Esse período coincide com a

maturação do pensamento de Marx [...]. (HOBSBAWM, 1983, p.

19-23).


Marx afirma que a verdadeira “emancipação política” se realiza no

âmbito da revolução do proletariado enquanto “emancipação social”

(WEFFORT, 1989, p. 239). Os direitos humanos são os direitos políticos

e que só podem ser exercidos em comunidade, em associação com

outros homens e “[...] seu conteúdo é a participação na comunidade

e, concretamente, na comunidade política, no Estado” (MARX, 1989,

p. 252-253). A cidade como meio de produção do sistema capitalista

representa um estágio histórico e social e isto fica muito evidente, na

medida em que as “relações de produção” correspondem a uma “[...]

determinada fase de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais”

(MARX, 1989, p. 276). E, deste modo, conclui Marx:


O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica

da sociedade, a base real sobre a qual se ergue a superestrutura

jurídica e política e à qual correspondem determinadas

formas de consciência social (MARX, 1989, p. 276).


Assim, poder-se-ia depreender que a “consciência social” corresponde

ao imaginário da cidade na superestrutura jurídica e política

representada pela legislação urbanística e ambiental, como afirma

Boaventura Santos (2007). E nada mais é do que a territorialização

dos interesses “dessas relações de produção” da estrutura econômica

local e, hoje em dia, cada vez mais global. Esse conceito é fundamental

para desvendar nos planos diretores os diversos interesses

e identificá-los como conflitos de classes no uso e ocupação do solo

da cidade, bem como estabelecer uma postura crítica ao urbanismo

modernizante como instrumento técnico de exploração do território

por um lado e ao planejamento urbano como lei fruto de um processo

político que, muitas vezes, não garante a participação democrática da

sociedade civil organizada.


No que se refere à questão política e a cidade em Marx, é importante

o pensamento formulado no livro Guerra civil na França (1852),

onde aparece “a comuna como antítese do Império” (MARX, 1989,

p. 272). Marx afirma que o poder estatal centralizado foi condição

essencial do regime monárquico e “[...] serviu à sociedade burguesa

nascente como uma arma poderosa em suas lutas contra feudalismo”.

No entanto “[...] seu desenvolvimento se achava entorpecido. “[...] O

brado de uma “república social” era a eliminação da [...] forma monárquica

de dominação de classe, mas também da própria dominação

de classe. A Comuna era a forma positiva dessa república” (MARX,

1989, p. 273). Assim, há claramente um reforço do poder local como

contraponto ao poder central de um Estado, como ente federativo,

sem base territorial ligada à vida cotidiana dos cidadãos, ou a seus interesses

mais imediatos. “A comuna estava formada pelos conselheiros

municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da

cidade” (MARX, 1989, p. 273). Essa exacerbada valorização do poder

local, o que equivaleria nos tempos atuais a uma municipalização das

políticas públicas urbanas e ambientais, é um aspecto fundamental

desse pensamento marxista que encontra respaldo nas legislações

contemporâneas.


Desse modo, o que se buscou nessas resumidas digressões sobre

o pensamento político e a cidade foi compreender em que medida as

forças políticas se articulam na sociedade para estabelecer esse pacto

socioambiental. Também, poder-se-ia perceber como esse processo

de elaboração dos planos diretores municipais está alicerçada nos diversos

fundamentos do pensamento político, tais como, de liberdade,

igualdade, democracia, participação popular, representatividade, legitimidade,

associações de interesses, forças políticas e luta de classes.


E como esses princípios, em certa medida, balizam todo o processo

de planejamento urbano quando este tem que se caracterizar como

uma lei que estabelece um pacto socioambiental. Estes pensadores,

ao expressarem idéias sobre a natureza, a forma e o regime de governo

da cidade-estado-nação, estão refletindo sobre seu tempo e, ao

mesmo tempo, apresentando um painel para compreensão da democracia

moderna. “A reflexão sobre a gênese do estado moderno é, nos

clássicos, o caminho de uma reflexão sobre a gênese da sociedade

moderna” (WEFFORT, 1989, p. 09).


Na época moderna, também como ensina Norberto Bobbio (2000),

política passou a ser usada como atividade, ou conjunto delas, que

tem como referência a pólis, ou seja, o Estado (BOBBIO, 2000, p.

954).

Dessa atividade a pólis é, por vezes, o sujeito, quando referidos

à esfera da Política atos como o ordenar ou proibir alguma coisa

com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado

grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um

determinado território, o legislar através de normas válidas erga

ommes [...] (BOBBIO, 2000, p. 954).


Assim, o significado clássico e moderno de política derivada da

pólis é “[...] tudo que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que

é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social [...]” (BOBBIO,

2000, p. 954). Parece indissociável, pois, o conceito de política com

o de cidade, reforçando ainda mais uma visão municipalista como

território jurídico-institucional de exercício de um poder local e de

cidadania.

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