CAPÍTULO I
1. O PACTO SOCIOAMBIENTAL E O IMAGINÁRIO
DA CIDADE: PLANEJAMENTO URBANO COMO LEI
1.1 - A política e a cidade
O pensador grego da antiquidade que formou a base do pensamento
moderno sobre a política foi Platão (428 a.c – 387 a.c1). Em
seus Diálogos, Platão refunda o pensamento político grego e “[...]
inventa esquemas imaginários de um grande poder”, articulando e
instrumentalizando seus esquemas por “meios conjuntistas-identitários”
(VERNAY, 2004, p. 17). Em A República (433 a.c) Platão estará
fundamentando o direito na cidade-estado grega, onde “[...] a justiça
é o fato de que o conjunto da cidade – [...] – está bem dividido, bem
articulado, e que nesse conjunto da cidade cada um tem o seu lugar
e não tenta tomar o de outro” (CASTORIADIS, 2004, p. 24). Desse
modo, a hierarquia da cidade reafirma a “[...] natureza diferente dos
indivíduos que compõem a cidade-estado” (CASTORIADIS, 2004, p.
25), justificando dessa forma a divisão em classes e a ocupação diferenciada
do território da cidade.
Em A República, estar-se-ia tentando uma aproximação para definir
a verdade e a boa cidade, uma idealização. Poder-se-ia dizer que
em A República fundamenta-se toda a idéia da ciência do urbanismo
com suas divisões, setorizações, zoneamentos e hierarquizações do
espaço. Nesse primeiro momento do pensamento platônico, a cidade
é um conceito puro, como a verdade e a beleza, onde a funcionalidade
e a boa forma da cidade pudessem ser trabalhadas em um conceito
técnico, onde no grego thecné se aproxima de uma idéia de arte. Parece
óbvia a coincidência desse pensamento clássico do filósofo grego
com uma gênese narrativa do urbanismo moderno.
De acordo com A República, são os filósofos de um tipo especial
que deveriam governar a cidade, segundo Platão, depois de terem
“[...] passado o essencial de suas vidas preparando-se do ponto de
1 Quase todos os autores situam Platão no período de 367 a.c. e 360 a.c, entretanto Castoriadis
(2004, p. 37) irá optar por uma data mais tardia entre o nascimento de Platão em 428 e suas
Cartas na fundação da Academia de Atenas em 367 a.c.. Desse modo, o período admitido por Castoriadis
(2004) foi usado para definir o momento histórico desse pensador grego.
vista dialético e matemático para a teoria, para a visão, para a intuição
das Idéias” (CASTORIADIS, 2004, p. 244). Mas nesse texto de
Platão encontra-se um paradoxo: “[...] nada nos diz que essas Idéias,
essas essências como tais tornem o filósofo da República capaz de gerenciar,
como se diz hoje, de governar nas situações singulares, concretas”
(CASORIADIS, 2004, p. 244). Esse tema do filósofo que [...] dirige
o olhar para um lugar e que não vê diante de seus pés [...]” é retomado
por Platão em Filebo e também faz parte do “[...] anedotário filosófico
dos gregos: lembremo-nos de Tales, que olha o céu e cai num buraco”
(CASTORIADIS, 2004, p. 244).
Mas é em A República, nos diálogos com o jovem Sócrates e Adimanto,
que Platão fundamenta a origem da cidade nas necessidades do ser
humano de viver e, para suprir essas necessidades “[...] uma pessoa
participa numa sociedade com outra, [...]” (PLATÃO, [369a-e], 2003, p.
56). “_ Assim, portanto, um homem precisa de outro para uma necessidade,
e o outro ainda para outra, e, como precisam de muita coisa, reúnem
numa só habitação companheiros e ajudantes. A essa associação
pusemos o nome de cidade” (PLATÃO, [369a-e], 2003, p. 56).
Nesse aspecto chama atenção no pensamento do filósofo grego a
fundamentação de que a cidade é uma associação de indivíduos, em
uma visão muito próxima da idéia de civitas, ou seja, uma noção de
reunião e pertencimento a uma comunidade de interesses e vivências
comuns. Também, deve-se ressaltar a utilização da palavra habitação
como extensão do conceito de cidade. A própria gênese do discurso
do urbanismo irá utilizar essa comparação entre a casa e a cidade
como morada de todos. Desse momento para frente Platão nos convida
a fundar “[...] em imaginação uma cidade” (PLATÃO, [369a-e],
2003, p. 56) e começará enumerar as necessidades humanas essenciais,
tais como a obtenção de alimentos, a habitação, o vestuário e
coisas do gênero, passa para os artífices, carpinteiros, mercadores
e diversas outras atividades (PLATÃO, [369a-e], 2003, p. 56). Essa
organização das atividades humanas na cidade e sua sistematização
em forma de hierarquia são, pois, as bases do pensamento filosófico
de Platão nessa tentativa de vislumbrar uma cidade ideal2.
2 Os Gregos tinham em sua mitologia um “lugar das delícias no além”, as “Ilhas dos Bem-Aventurados”
e é em Hesíodo a descrição mais antiga dessa utopia (Trabalhos e Dias). Muito embora em
outros autores essa concepção vai se “espiritualizando” é em Platão, a partir do mito do Górgias,
que ela vem “[...] dotada de um conteúdo ético, tornando-se o lugar de prêmio dos que praticaram
o bem” (NASSETTI, Pietro, Tradutor de A República de Platão, 2004, nota de rodapé à pág. 215).
Não parece despropositado que o discurso do urbanismo modernista
incorpore esses elementos sistematizadores e reguladores para
tentar compreender o fenômeno urbano enquanto algo possível de se
transformar em uma nova ciência. Essa idéia é fundamentada pelo
próprio “[...] Platão que pensa que há uma verdadeira ciência das
coisas em geral e das coisas humanas em particular, que, por conseguinte,
é ao depositário dessa ciência que pertence regrar, regular,
governar as coisas humanas” (CASTORIADIS, 2004, p. 64). Ainda em
Platão ([373a-e], 2003, p. 60) encontra-se referência à cidade sã e
àquela com doença, ou seja, a cidade “[...] que está inchada de humores”
onde existe também a injustiça. No entanto, mais à frente é
admitida que a tarefa mais importante é, na verdade, “[...] proceder
à escolha daqueles de qualidades e natureza apropriadas para a custódia
da cidade” (PLATÃO, [374a-e], 2003, p. 62). E, após digressões
com seus amigos de diálogo, Platão vai concluir que as qualidades
“físicas e psíquicas” para essa tarefa: “_Por conseguinte, será por
natureza o filósofo, fogoso, rápido e forte quem quiser ser um perfeito
guardião da nossa cidade” (PLATÃO, [376a-e], 2003, p. 64). E,
depois, tece comentário sobre a educação desse filósofo que deveria
conhecer todas as atividades humanas para poder regrar e organizar
a vida na cidade.
Mas, com as ponderações de sues amigos nos diálogos sobre a
corrupção que poderia advir desse poder absoluto sobre as coisas do
estado e do interesse público, começam a elaborar regras e padrões
de comportamento que deveria nortear as ações desse guardião da
cidade e de todos os cidadãos, como uma forma de “[...] delinear as
leis [...]”. O quê, na voz do jovem Sócrates surge como uma indagação:
“___Não achas que depois disto farão o esboço da forma da
constituição?” (PLATÃO, [501a-e], 2003, p. 197). Assim, se introduz
a lei como fio condutor da vida em sociedade bem como a forma
de governo democrático (3) enquanto melhor meio de trazer à luz as
verdadeiras aspirações do povo para a administração da cidade (4). E
os amigos filósofos em A República vão concluir, ainda na forma de
3 O ateniense Sólon (c.640-560 a.C) é exaltado diversas vezes como fundador da democracia,
mesmo em Platão.
4 Nesse aspecto faz-se um paralelo com o mito da Caverna apresentado (PLATÃO, 514a-c, 2003, p.
210) para demonstrar a luz como metáfora do conhecimento e o encontro da verdade e da justiça
como forma de administração da coisa pública.
indagação de Platão sem contestações dos demais interlocutores, o
seguinte: “_ Então que outras pessoas forçarás a ir para guardiões do
Estado, senão àqueles que, sendo mais conhecedores dos métodos
da melhor administração da cidade, usufruem de outras honras e de
uma vida melhor do que a do político?” (PLATÃO, [521a-e], 2003, p.
217).
No entanto é em seu outro diálogo, O Político (294 a.c.), que Platão
aprofunda a problemática de gestão da cidade. Ou melhor, apresenta
a preocupação com a atividade da administração da cidade como função
específica para um certo tipo de indivíduo. Nesse Diálogo, Platão
sintetiza como ciência, nas palavras do “Estrangeiro de Eléia”, a importância
desse indivíduo para a vida da cidade:
_ Essa atividade que comanda todas as outras, que cuida das leis
e de todos os assuntos da pólis e que une todas essas coisas em
um tecido da maneira mais perfeita possível, nós teríamos razão,
ao que me parece, de escolher-lhe um nome razoavelmente
simples para a universalidade de sua função e esta deveríamos
chamá-la de política (PLATÃO, O Político, [305e] Apud CASTORIADIS,
2004, p. 84).
As comparações do político como um tecelão e como pastor, utilizadas
por Platão nesse diálogo, ajudam a compor a imagem do político
como aquele que tece as virtudes dos cidadãos e faz com que haja
uma boa mistura dessas qualidades, ou que cuida para que os outros
sejam protegidos e tenham suas necessidades atendidas (CASTORIADIS,
2004, p. 60). Por outro lado, é ainda aquele que usa subsidiariamente
as artes auxiliares da política, tais como a estratégia, a retórica
e a arte do juiz para a democracia da cidade: “Aristóteles retomará
essa idéia no início da Ética a Nicômaco quando diz que a política é a
arte mais arquitetônica” (CASTORIADIS, 2004, p. 84). Ou poder-se-ia
parodiá-lo dizendo que a política é a arte mais urbanística?
No entanto, como Castoriadis (2004) mesmo admite, o Platão mais
maduro com o Diálogo posterior, As Leis, consolida a idéia de que
“[...] a lei fala somente do universal enquanto na realidade sempre
se está lidando com o singular” (CASTORIADIS, 2004, p. 64). Nesse
sentido parece que ele abandona de vez a idéia daquela “[...] cidade
perfeita definida de uma vez por todas” (CASTORIADIS, 2004, p.
65). “Não pode haver lei que englobe de uma vez por todas e para
sempre todos os aspectos das atividades humanas, pois a separação
entre a lei e a realidade não é acidental, ela é essencial” (CASTORIADIS,
2004, p. 65). Mas neste diálogo, As Leis, Platão coloca algumas
considerações sobre a revisão das leis de tempos em tempos, mas
deixa claro também que o objetivo essencial das leis é “[...] paralisar
a história, fixar a instituição da sociedade” (CASTORIADIS, 2004, p.
65). Em outros momentos, com sua filosofia reflexiva, deixa claro
em O Político que “Nenhuma regulamentação poderá limitar a alteração
perpétua do real social e histórico” (CASTORIADIS, 2004, p. 66).
Dessa forma, as obras sobre a moral nos gregos eram tratados sobre
as leis e o De Legibus [Das Leis] de Cícero quando “[...] define a lei
natural, que características lhe atribui? Vetare et jubere: proibir e ordenar”
(BOBBIO, 2004, p. 53).
Essas idéias foram se consolidando ao longo dos tempos e outros
pensadores aprimoraram-nas. E com essa finalidade de ordenar as
atividades, o uso e a ocupação do território tornou-se preocupação e
ação dos legisladores da cidade. Aristóteles, após Platão, vai afirmar
que o objetivo da Política não é viver, mas viver bem, isto é, colocando
a atividade como “uma arte ou ciência do Governo” (ARISTÓTELES,
Política, [127b] 2003). Os séculos foram sedimentando o Estado moderno
e diversos homens de pensamento político foram contribuindo
para seu aperfeiçoamento. Desde o florentino Maquiavel, no séc. XVI,
e os ingleses Hobbes e Locke no séc. XVII, até o século XVIII com os
franceses Montesquieu e Rousseau e os americanos Hamilton e Jay
que “[...] o pensamento político acompanha a construção de uma ordem
política da qual o Estado-Nação haveria de ser a realização mais
completa” (WEFFORT, 1989, p. 07). Depois, no século XIX, importantes
pensadores, tais como Burke, Kant, Hegel, Tocqueville, Stuart
Mill e Marx avançam na fundamentação dessa concepção do Estado
moderno e, por conseguinte, das formas de governo.
Em “O Príncipe” de Maquiavel, datado dos anos de 1512-1513, fazse
uma diferenciação entre a anarquia, o principado e a república.
É que em qualquer cidade se encontram estas duas forças contrárias,
uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado
nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes
dominar e oprimir o povo. Destas tendências opostas surge nas
cidades, ou o principado ou a liberdade ou a anarquia (MAQUIAVEL,
1989, p. 31).
Está claro desde o início, conforme explicitado no título do próprio
Capítulo V de O Príncipe, que se discute “como se devem governar as
cidades ou principados [...]”. E Maquiavel (1989) está contrapondo
a anarquia e a desordem das cidades como problema político para
“[...] encontrar mecanismos que imponham a estabilidade das relações,
que sustentem uma determinada correlação de forças” (SADECK,
1989, p. 20). Maquiavel (1989) sugere, pois, que duas formas
existem para contrapor a anarquia decorrente da “natureza humana”:
o principado e a república. A escolha entre essas duas formas institucional
independem da vontade “[...] ou de considerações abstratas e
idealistas sobre o regime, mas da situação concreta” (SADECK, 1989,
p. 20). E Maquiavel (1989) está deixando claro que o principado é
originado pela “vontade dos grandes”, isto é, da elite, ou do povo. No
primeiro caso origina-se a monarquia e no segundo, a república. No
entanto, em outro escrito, Maquiavel (1989) coloca como importante
nessa concepção também o fato de que a organização do Estado deve
ser uma instituição perene.
Não basta, pois, para a felicidade de uma república ou de um reino,
ter um príncipe que governe com sabedoria durante a vida; é
necessário que se possua um que organize o Estado de modo que,
mesmo depois de sua morte, o governo permaneça em plena vida
(MAQUIAVEL, 1989, p. 45).
Em Maquiavel, fica clara a noção de que a administração do Estado,
ou como nesse momento histórico poder-se-ia diretamente associá-
la enquanto administração da cidade, figura como elemento de
estruturação de um modo de gestão da vida em comum, e, que deveria
permanecer ao longo dos tempos independente de uma pessoa,
mas deve ser algo fora da figura de um homem, ou seja, uma instituição
forte. Também fica evidente a noção de que para se contrapor à
anarquia nas cidades far-se-ia necessário um poder central forte que
dominaria e ordenaria os interesses comuns para garantir a liberdade
dos indivíduos. Essa é a defesa do poder estatal como função reguladora
da vida cotidiana dos cidadãos e, por conseguinte, estabelecendo
os padrões de uso e ocupação do território comum.
Entre os séculos XVI e o XVIII surgiram os filósofos chamados de
contratualistas e afirmavam basicamente que:
[...] a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os
homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização
– que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles,
estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política
(RIBEIRO, 1989, p. 52).
E Hobbes (5) com o seu livro Leviatã discorre sobre a natureza do
homem e a igualdade entre eles, mostrando o modo de conte-los
para que um não subjugue outro usando a astúcia ou a força de
um Estado controlando e reprimindo. Desse modo, afirma Hobbes,
torna-se necessário um Estado controlando e reprimindo os homens
e “conseqüentemente esse aumento do domínio sobre os homens,
sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos
admitidos” (HOBBES, 1989, Cap. XIII, p. 75). No entanto, para por
fim ao conflito entre os homens far-se-ia necessário um fundamento
jurídico para o uso da força e impor respeito, o que em Hobbes fica
definido como a “lei de natureza”.
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral,
estabelecido pela razão, mediante o qual de proíbe a um homem
fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários
para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir
melhor para preservá-la (HOBBES, 1989, Cap. XIV, p. 78).
Em Hobbes (1988) é fundamentada a idéia de que “[...] um Estado
é a condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com
o Estado” (RIBEIRO, 1989, p. 62). E a multidão pode “[...] designar
um homem ou uma assembléia de homens como representante de
suas pessoas [...]”. “Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa
se chama Estado, em latim civitas” (HOBBES, 1989, cap. XVII, p.
105-106).
Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens
concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros,
que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja
atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos
(5) Hobbes, refugiado na França, teria publicado o Leviatã em 1651 como uma apologia do estado
todo-poderoso.
eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto
os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele,
deverão autorizar todos os atos e decisões, a fim de viverem em
paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens
(HOBBES, 1989, cap. XVIII, p.107 – grifos do autor).
A distribuição da terra em Hobbes (1988) é regulada pelo poder do
Estado de modo a garantir os interesses comuns, onde a propriedade
também [...] é um efeito do Estado [...]” e não um direito sagrado
do indivíduo (HOBBES, 1989, cap. XXIV, p. 150). E dessa forma, a
competência em decidir em que lugares podem ter quais atividades
e como algumas delas devem ser “[...] reservadas para manutenção
em sua capacidade pública [...]” (HOBBES, 1989, cap. XXIV, p. 153).
O século XVII apresenta uma mudança no pensamento político a
partir das idéias de John Locke (1632-1704) e que se caracteriza por
uma postura individualista liberal, de um “[...] defensor da liberdade
e da tolerância [...]”. E, ainda, como [...] fundador do empirismo,
doutrina segundo a qual todo conhecimento deriva da experiência”
(MELLO, 1989, p. 83). Locke em seu ensaio sobre a origem, objetivo
e extensão do governo civil, no texto “Segundo Tratado”, demonstra
que “[...] nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento
expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo”
(MELLO, 1989, p. 84 – grifo do autor). Também sustenta que o trabalho
sobre a terra era gerador de direitos sobre ela e, pois, o “[...] fundamento
originário da propriedade” (MELLO, 1989, p. 85). Em Locke
os homens estabelecem livremente entre si um contrato social que
forma a “[...] sociedade política ou civil”. Este contrato social é [...]
um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente
em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os
direitos [...]” (MELLO, 1989, p. 86 – grifo do autor).
E assim todo homem, concordando com outros em formar um
corpo político sob um governo, assume a obrigação para com todos
os membros dessa sociedade de se submeter à resolução da
maioria conforme esta assentar; se assim não fosse, esse pacto
inicial – pelo qual ele juntamente com outros se incorpora a uma
sociedade – nada significaria, e deixaria de ser pacto [...] (LOCKE,
1989, p. 97).
Para Locke os fundamentos do Estado civil estavam no livre consentimento
dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade e formação
de um governo, a proteção do direito à propriedade, o controle
do executivo pelo legislativo, bem como o controle do governo
pela sociedade (MELLO, 1989, p. 87). Começam os delineamentos
de como as forças políticas poderiam controlar a administração do
Estado, ou neste momento, ainda se confundiam com a gestão das
cidades e da produção agrícola para abastecimento e mercantilização
do excedente.
Poder-se-ia depreender desses contratualistas a noção principal de
um pacto socioambiental como o consentimento da sociedade civil
organizada em dispor de seu território comum, através de sua relação
imediata enquanto comunidade decorrente de uma forma de organização
sob um poder político legitimado socialmente (6). Na idéias de
Montesquieu têm-se um novo entendimento de como se estabelece
um pacto socioambiental a partir da percepção das correlações de forças
sociais que se materializaram no processo político de construção
deste. Essa idéia é fundamental para se compreender em que medida,
hoje em dia, certos elementos são mantidos, ou não, no pacto
sociambiental da cidade em determinados momentos, pois podem ser
apenas reflexo de um embate ideológico entre forças políticas. Muitas
das discussões sobre a função da cidade e seu rebatimento físicoterritorial
em um plano diretor, transformados em zoneamentos, refletem
apenas os conflitos políticos e estas correlações de forças, sem
nenhum senso técnico embasando um pretenso urbanismo neutro.
Rousseau em 1755 publica seu texto o Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens, na Enciclopédia,
onde também aparece o seu artigo Economia política. E, em 1762,
Rousseau publica o Contrato Social e inova o pensamento político ao
“[...] propor o exercício da soberania pelo povo, como condição primeira
para sua libertação” (NASCIMENTO, 1989, p. 194). Em o Contrato
Social, Rousseau procura estabelecer as possibilidades de um pacto
social legítimo através da liberdade civil, onde “[...] o fundamental é
a condição de igualdade entre as partes contratantes” (NASCIMENTO, 1989, p. 196). Ao capítulo VI
do Contrato Social, Rousseau dá o título
Do Pacto Social, onde fundamenta que esta associação dos homens
produz, em lugar da pessoa particular, “[...] um corpo moral e coletivo,
composto de tantos membros quanto são os votos da assembléia”
(ROUSSEAU, 1989, p. 214).
(6) O pensamento político sofrerá nova inflexão com as idéias de Montesquieu (1973), demonstrando
logo na primeira parte de seu livro, O Espírito das Leis, que “As leis, em seu significado mais amplo,
são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas [...] e , ainda, que as “[...] as leis
são as relações que se encontram entre ela e os seres, e as relações entre esses diversos seres”
(MONTESQUIEU, 1973, p. 121).
Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de
todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje,
o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus
membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e
potência quando comparado a seus semelhantes (ROUSSEAU,
1989, p. 221 – grifos do autor).
É importante a concepção do termo cidade como forma de união ou
associação entre os homens, o que se aproxima do conceito de civitas
e mesmo da noção política do cidadão como membro legitimador
desse corpo coletivo. O pacto social, pois, obrigaria tacitamente a um
compromisso individual com o coletivo, onde “o que o homem perde
pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a
tudo que o seduz e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade
civil e a propriedade de tudo que possui” (ROUSSEAU, 1989, p.
223). Ora, vê-se nessa passagem o fundamento claro da propriedade
privada e seu reconhecimento na base do pacto, mas este direito
estará também limitado ao interesse coletivo, da coisa pública. Os
diplomas legais modernos no Brasil, notadamente o estatuto das Cidades,
reafirmam esse princípio na função social do solo urbano e os
planos diretores tentam dar concretude a esses interesses coletivos
quando condicionam o uso de certas áreas consideradas de interesse
ambiental ou social. A propriedade particular da terra urbana, oi, sofre
um condicionamento ao interesse coletivo para garantir um pacto
socioambiental.
Das relações entre os homens e a lei, Rousseau estabelece uma
primeira a dos membros entre si ou, a segunda, entre os homens e
o corpo social. E esta segunda relação seria tão grande quanto possível,
[...] de modo que cada cidadão se encontre em perfeita independência
de todos os outros e em uma excessiva dependência da
pólis: o que se consegue sempre graças aos mesmos meios, pois
só a força do Estado faz a liberdade de seus membros. É desta
segunda relação que nascem as leis civis (ROUSSEAU, 1989, p.
229).
Ora, novamente em Rousseau a cidade é o palco, o território onde
se materializa o pacto social e nasce a lei civil com base nos costumes
e nas convenções sociais. Desse modo, desde Platão até Rousseau, a
cidade é o espaço político por excelência para exercício dos direitos
civis e territorialização socioambiental, que é de interesse da coletividade,
ou seja, uma concepção da cidade-estado. Essas idéias sobre
a engrenagem política e das condições de legitimidade de um pacto
social perpassaram os séculos e fundamentam hoje muito do que se
faz na legislação urbanística e ambiental com a garantia de autonomia
municipal nas constituições nacionais (7).
No século XVIII surge um importante pensador inglês, considerado
o fundador do conservadorismo moderno, é Edmund Burke. Era hostil
ao movimento revolucionário surgido após a revolução francesa em
1789 que inspirou sua obra mais importante publicada em 1790: Reflexões
sobre a revolução em França. Nesta obra, Burke discute idéias
fundamentais tais como a questão da igualdade, dos direitos dos homens
e da soberania popular e a “[...] deslegitimação dos valores tradicionais”
(KINZO, 1989, p. 19). Burke admite que a sociedade é de
fato um contrato e o Estado é “[...] uma associação de toda ciência,
de toda arte, de toda virtude e de toda perfeição [...] uma parceria
não apenas entre aqueles que estão vivendo, [mas também entre]
aqueles que estão mortos e aqueles que irão nascer” (BURKE, 1989,
p. 42). É interessante que mesmo vivendo e manifestando-se em um
período conturbado da história na Inglaterra Burke lança a idéia de
um pacto com as gerações futuras. Esta noção vai, também, fundamentar
o conceito de desenvolvimento sustentável do século XX, nos
fins dos anos 80, pelo movimento ecológico.
O pensamento político recebe uma enorme contribuição do inte-lectual alemão Emmanuel Kant (1724-
1803) quando este afirma que
“[...] há dois gêneros de objetos: a natureza, que é objeto da física,
e a liberdade, que é objeto da filosofia moral ou ética” (ANDRADE,
1989, p. 50). E a liberdade é, pois, segundo Kant, a “[...] liberdade
de agir segundo as leis”, sendo esta que designa sua autonomia, ou
seja, “[...] a propriedade dos seres racionais de legislarem para si
próprios” (ANDRADE, 1989, p. 53-54).
(7 ) Em 1787, na Filadélfia, reuniu-se a Convenção Federal que elaborou a nova Constituição dos Estados
Unidos. “O federalista” é uma série de ensaios publicados na imprensa de Nova York em 1788,
como obra conjunta de Alexander Hamilton (1755-1804), James Madison (1751-1836). E John Jay
(1745-1859). A inflexão no pensamento político, a partir destes textos de Os Federalistas, vem na
defesa de um governo central forte e de uma ampliação territorial do Estado como condição para
governos populares, em contraponto ao pregado até então. É a passagem da república das cidades
para uma democracia popular de massas. Há um deslocamento na idéia política para o que seria
uma concepção de cidade-estado-nação.
O direito público em Kant é o
conjunto de leis “[...] que requerem uma promulgação pública a fim
de produzir uma situação jurídica [...]”. É, pois, uma manifestação da
coletividade e “[...] quando os indivíduos numa nação relacionam-se
dessa maneira, constituem uma sociedade civil (status civilis). Encarada
como totalidade em relação a seus próprios membros, essa
sociedade civil chama-se Estado (civitas)” (KANT [311], 1989, p. 77
– grifos do autor). “O contrato originário” é o “[...] ato onde o povo se
constitui em Estado [...]” e que deve ser legitimado através dos atributos
jurídicos necessários ao cidadão para participar do processo de
elaboração dessas leis, quais sejam, a liberdade legal, a independência
civil ou autonomia e a igualdade (KANT [313-315], 1989, p. 80).
As contribuições do pensamento de Kant repercutem até hoje
quando da representação política da sociedade civil organizada no
processo de elaboração da legislação urbanística e ambiental. Ainda,
pelo reconhecimento e exigência legal, como no Estatuto das Cidades,
de que sejam instituídos conselhos com representantes do estado, da
sociedade civil e das concessionárias de serviços públicos e institutos
de ensino e pesquisa. Em Kant também é fundamentado o conceito
de que todas as demandas legais, posto que sem elas não há justiça,
devem vir na “forma da publicidade” (KANT [381-382], 1989, p. 93).
Ainda, a exigência legal das audiências públicas para elaboração dos
planos diretores urbanos pode ser interpretada como legitimação de
um pacto socioambiental, ou seja, corroborada como uma extensão
desse pensamento político formulado por Kant.
No entanto, em Hegel há uma mudança radical no conceito contratualista,
onde o Estado é derivado da criação artificial, produto de um
pacto. Segundo Hegel estar-se-ia “[...] confundindo Estado e sociedade
civil” (BRANDÃO, 1989, p. 107). A inversão desse pensamento por
Hegel coloca o Estado enquanto associação e verdadeiro conteúdo,
pois “[...] o destino dos indivíduos é viver uma vida universal” e a
base do Estado não seria um contrato, mas produto da vontade universal
(HEGEL, 1989, p. 115). Em Hegel, a criação do Estado é uma
realidade histórica e mundana “[...] produzida pela ação dos homens”
(BRANDÃO, 1989, p. 111). O viver coletivo é, pois, universalizante, o
que retoma a concepção aristotélica segundo a qual o homem é um
animal naturalmente social e o Estado não apenas a condição do viver
junto, mas uma associação para o bem viver.
Mas a contribuição principal de Hegel ao pensamento político foi,
conforme Marx assume posteriormente, colocar a questão da economia
clássica em relação à filosofia e à política moderna. É assim que
ele se ocupa dos problemas da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra
e esta “[...] reconciliação com a realidade (Versohnung mit der
Wirklichkheit), que permite Hegel perceber e formular com clareza,
acuidade e amplitude até então inigualáveis os problemas da sociedade
européia de seu tempo” (BRANDÃO, 1989, p. 114). Interessante
perceber que a sociedade começa, nesse momento da história, seu
processo de urbanização e o pensamento de Hegel vai mostrar essa
ruptura para surgimento dessa nova civilização industrial. Assim, em
Hegel, da mesma forma que o Estado, os sistemas das leis são reflexos
das correlações de forças das diversas classes que se reúnem em
corporações para defesa de interesses temporais comuns. E como o
território, com seus recursos naturais, é o capital essencial para a sociedade
industrial emergente, a regulação do uso e ocupação do solo
pelo Estado e suas legislações podem ser entendidas como controle e
domínio de classe sobre o espaço urbano e rural.
Além disso, em um Estado civilizado, o legislar é somente uma
progressiva transformação das leis existentes, e as chamadas novas
leis podem referir-se somente a minúcias e particularidades,
cujo conteúdo já é preparado mediante a prática dos tribunais, ou
também precedentemente decidido (HEGEL, 1989, p. 132).
Essa digressão pode remeter ao processo de elaboração dos planos
diretores que, em quase sua totalidade, são decididos previamente
por técnicos urbanistas em uma linguagem hermética e cifrada para
“legitimar um saber” específico e muitas vezes camuflam interesses.
Esta prática subverte a participação popular em apenas uma multidão
que legitimaria o processo de criação da lei com uma cooptação silenciosa.
Essa discussão, entretanto, ainda dever ser objeto de muitos
outros estudos que podem fazer avançar esse processo do planejamento
urbano como lei, como pacto socioambiental.
No entanto, é com Tocqueville que o conceito de democracia como
processo universal começa a ser fundamentado na liberdade e na
igualdade. E ele complementa que, para manutenção das liberdades
fundamentais, “[...] é na ação política dos cidadãos que está posta
a garantia de sua real existência na democracia” (QUIRINO, 1989,
157). Portanto, o germe da necessária participação democrática dos
cidadãos foi inoculado fortemente no pensamento político através de
Tocqueville e ele, ainda, afirma que as leis e instituições políticas sozinhas
não seriam suficientes para a garantia da liberdade. “Isso porque
o verdadeiro sustentáculo da liberdade está posto na ação política
dos cidadãos e na sua participação nos negócios públicos” (QUIRINO,
1989, 157). Assim tocqueville incute uma nova perspectiva no processo
de construção democrática, através da igualdade e liberdade,
concebendo “[...] uma sociedade onde todos, encarando a lei como
obra sua, a amariam e a ela se submeteriam sem constrangimento;
[...]” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 164).
O pensamento político de John Stuart Mill (1806-1873) foi muito
importante para compreender o processo de construção da democracia
moderna, principalmente pelo fato dele refletir sobre questões
fundamentais de economia e política, suas contemporâneas na revolução
industrial inglesa. Como afirma Eric Hobsbawm (1978), “[...]
nenhuma mudança na vida humana, desde a invenção da agricultura,
da metalurgia e do surgimento das cidades no neolítico foi tão profunda
como o advento da industrialização” (HOBSBAWM, 1978, p.
13). Stuart Mill é considerado o grande representante do pensamento
liberal democrático do século XIX e seu fundamento está no “[...] reconhecimento
de que a participação política não é e não pode ser encarada
como privilégio de poucos” (BALBACHEVSKY, 1989, p. 195).
No pensamento de Mill pode-se encontrar, portanto, duas noções
fundamentais na ciência política contemporânea, quais sejam, a primeira
é a “[...] defesa do pluralismo e da diversidade societal contra
as interferências do Estado e da opinião pública [...]”; e, a segunda
é a “[...] perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração
do dissenso predomine sobre a imposição de consensos
amplos” (BALBACHEVSKY, 1989, p. 198). Estes dois eixos são importantíssimos
para a compreensão do processo de elaboração das leis
urbanísticas, onde os conflitos e interesses diversos e plurais muitas
das vezes devem ser compatibilizados. Onde, ainda, por outro lado,
o consenso fabricado por movimentos articulados por interesses po-
líticos devem ser identificados e anuladas suas tentativas de imposição
como maioria circunstancial nas audiências públicas. A noção dos
sistemas abertos e multipolares são, pois, importantes na tentativa
de conciliação dos usos, atividades urbanas e ocupação territorial, na
medida em que mexem com os direitos individuais de inúmeros proprietários
em função de um bem coletivos que é a cidade. Mas como
“[...] é impossível a participação pessoal de todos, a não ser numa
parcela muito pequena dos negócios públicos, o tipo ideal de um governo
perfeito só pode ser o representativo” (MILL, 1989, p. 223).
Em Karl Marx o pensamento político do século XIX sofreu uma
profunda inflexão no que diz respeito às inter-relações entre economia,
classes sociais e política, bem como a emergência e perspectivas
revolucionárias do proletariado. Com seu “O Manifesto” ele descreve
a expansão, “[...] ao mesmo tempo destrutiva recriadora, da
burguesia” (WEFFORT, 1989, p. 233). Bem como afirma que a “[...]
história passada da humanidade é a história da luta de classes [...]”
(WEFFORT, 1989, p. 234). Seu pensamento político germinou em
uma Europa revolucionária, ainda com a memória fresca da revolução
francesa e das guerras napoleônicas, sendo ainda contemporâneo das
revoluções de 1830 e de 1848, da Comuna de Paris em 1871. Em
seu livro sobre a história do Marxismo, Eric Hobsbawm (1983), faz
uma periodização interessante que articula o pensamento econômico
e político com o processo da emergente sociedade industrial e, conseqüentemente,
com a intensiva e, sem precedente, urbanização da
civilização humana.
1 - O período anterior a 1848-1850 coincide com a primeira grande
crise de desenvolvimento do primeiro capitalismo industrial
[anos 1830 e 1840], que em alguns países é ao mesmo tempo
crise de transição para o capitalismo industrial; coincide também
com a crise revolucionária que tem seu ápice em 1848.
2 – 1850-1875-1883. É o período clássico do desenvolvimento
capitalista no século XIX [...]; o nascimento de um movimento
operário no continente europeu (a I Internacional); [...] a Comuna
de Paris, simultaneamente a última das revoluções jacobinas
e a primeira revolução proletária. Esse período coincide com a
maturação do pensamento de Marx [...]. (HOBSBAWM, 1983, p.
19-23).
Marx afirma que a verdadeira “emancipação política” se realiza no
âmbito da revolução do proletariado enquanto “emancipação social”
(WEFFORT, 1989, p. 239). Os direitos humanos são os direitos políticos
e que só podem ser exercidos em comunidade, em associação com
outros homens e “[...] seu conteúdo é a participação na comunidade
e, concretamente, na comunidade política, no Estado” (MARX, 1989,
p. 252-253). A cidade como meio de produção do sistema capitalista
representa um estágio histórico e social e isto fica muito evidente, na
medida em que as “relações de produção” correspondem a uma “[...]
determinada fase de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais”
(MARX, 1989, p. 276). E, deste modo, conclui Marx:
O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica
da sociedade, a base real sobre a qual se ergue a superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas
formas de consciência social (MARX, 1989, p. 276).
Assim, poder-se-ia depreender que a “consciência social” corresponde
ao imaginário da cidade na superestrutura jurídica e política
representada pela legislação urbanística e ambiental, como afirma
Boaventura Santos (2007). E nada mais é do que a territorialização
dos interesses “dessas relações de produção” da estrutura econômica
local e, hoje em dia, cada vez mais global. Esse conceito é fundamental
para desvendar nos planos diretores os diversos interesses
e identificá-los como conflitos de classes no uso e ocupação do solo
da cidade, bem como estabelecer uma postura crítica ao urbanismo
modernizante como instrumento técnico de exploração do território
por um lado e ao planejamento urbano como lei fruto de um processo
político que, muitas vezes, não garante a participação democrática da
sociedade civil organizada.
No que se refere à questão política e a cidade em Marx, é importante
o pensamento formulado no livro Guerra civil na França (1852),
onde aparece “a comuna como antítese do Império” (MARX, 1989,
p. 272). Marx afirma que o poder estatal centralizado foi condição
essencial do regime monárquico e “[...] serviu à sociedade burguesa
nascente como uma arma poderosa em suas lutas contra feudalismo”.
No entanto “[...] seu desenvolvimento se achava entorpecido. “[...] O
brado de uma “república social” era a eliminação da [...] forma monárquica
de dominação de classe, mas também da própria dominação
de classe. A Comuna era a forma positiva dessa república” (MARX,
1989, p. 273). Assim, há claramente um reforço do poder local como
contraponto ao poder central de um Estado, como ente federativo,
sem base territorial ligada à vida cotidiana dos cidadãos, ou a seus interesses
mais imediatos. “A comuna estava formada pelos conselheiros
municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da
cidade” (MARX, 1989, p. 273). Essa exacerbada valorização do poder
local, o que equivaleria nos tempos atuais a uma municipalização das
políticas públicas urbanas e ambientais, é um aspecto fundamental
desse pensamento marxista que encontra respaldo nas legislações
contemporâneas.
Desse modo, o que se buscou nessas resumidas digressões sobre
o pensamento político e a cidade foi compreender em que medida as
forças políticas se articulam na sociedade para estabelecer esse pacto
socioambiental. Também, poder-se-ia perceber como esse processo
de elaboração dos planos diretores municipais está alicerçada nos diversos
fundamentos do pensamento político, tais como, de liberdade,
igualdade, democracia, participação popular, representatividade, legitimidade,
associações de interesses, forças políticas e luta de classes.
E como esses princípios, em certa medida, balizam todo o processo
de planejamento urbano quando este tem que se caracterizar como
uma lei que estabelece um pacto socioambiental. Estes pensadores,
ao expressarem idéias sobre a natureza, a forma e o regime de governo
da cidade-estado-nação, estão refletindo sobre seu tempo e, ao
mesmo tempo, apresentando um painel para compreensão da democracia
moderna. “A reflexão sobre a gênese do estado moderno é, nos
clássicos, o caminho de uma reflexão sobre a gênese da sociedade
moderna” (WEFFORT, 1989, p. 09).
Na época moderna, também como ensina Norberto Bobbio (2000),
política passou a ser usada como atividade, ou conjunto delas, que
tem como referência a pólis, ou seja, o Estado (BOBBIO, 2000, p.
954).
Dessa atividade a pólis é, por vezes, o sujeito, quando referidos
à esfera da Política atos como o ordenar ou proibir alguma coisa
com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado
grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um
determinado território, o legislar através de normas válidas erga
ommes [...] (BOBBIO, 2000, p. 954).
Assim, o significado clássico e moderno de política derivada da
pólis é “[...] tudo que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que
é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social [...]” (BOBBIO,
2000, p. 954). Parece indissociável, pois, o conceito de política com
o de cidade, reforçando ainda mais uma visão municipalista como
território jurídico-institucional de exercício de um poder local e de
cidadania.